Este pecadilho de publicar coisas que não respeitam o título e o objectivo do blog acabam nisto...
Depois de aqui colocar a resposta ao "para que serve a escola?" sinto-me no dever, mais que obrigação, de partilhar algumas das fontes que permitiram tal resposta. Ficam aqui ao lado, na biblioteca, para consulta.
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
terça-feira, 15 de outubro de 2013
Não somos animais
Aos três anos as teorias criacionista e Darwinista revelam-se, ambas, igualmente falaciosas.
Qual anarca da génese humana, se soubesse escrever o meu filho seria capaz de grafitar numa qualquer parede:
"Nem Deus nem Darwin!",
caso aceitasse a possibilidade que qualquer um deles ter existido...
Porque é que não somos animais?, pergunto.
A sua resposta é simples:
Nós não somos animais porque usamos sapatos!
Agora tentem refutar...
Qual anarca da génese humana, se soubesse escrever o meu filho seria capaz de grafitar numa qualquer parede:
"Nem Deus nem Darwin!",
caso aceitasse a possibilidade que qualquer um deles ter existido...
Porque é que não somos animais?, pergunto.
A sua resposta é simples:
Nós não somos animais porque usamos sapatos!
Agora tentem refutar...
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
Para que serve a escola?
Esta não é uma conversa em miúdos, mas tem muito do que se conversa sobre os miúdos. A pergunta, tão simples surgiu e a minha resposta, que não é cientifica nem filosófica, aqui fica.
A educação como a entendemos
hoje, de uma forma generalizada, no contexto das sociedades ocidentais remete
para a relação entre a criança-aluno e o mundo onde esta se irá integrar na
qualidade de cidadão. A educação, através da escolarização, servirá para mediar
essa relação entre a criança e o mundo, capacitando-a a lidar de forma que
designaremos genericamente por “eficaz”, seja lá o que isso for…
Assumir que a escolarização
é o percurso necessário à aquisição dos conhecimentos e competências
necessários à integração na sociedade e a esse lidar de forma eficaz com o
mundo contém em si mesmo o seguinte pressuposto: A não-escolarização constitui um handicap que limita efectivamente a
possibilidade de participação plena da pessoa na sociedade.
Esta é a primeira contradição
no ensino e na sociedade A noção de que um individuo, criança, jovem ou adulto
não escolarizado não pode usufruir de todos os direitos de um cidadão normal,
remetendo-o não (apenas) pela necessidade de protecção mas por possuir um
deficit formativo para uma categoria menor de cidadania. A não escolarização
constitui aos olhos dos cidadãos “educados” da sociedade actual a uma
deficiência em muitos aspectos equivalente a uma incapacidade física ou mental.
A segunda oposição, inerente
à primeira remete para a oposição entre a criança e o mundo e a incapacidade de
se relacionarem de forma eficaz, sem a mediação de um adulto capacitado –
instruído – de forma a que a criança apreenda o mundo que a rodeia e o manipule
de tal forma que se torne útil à sociedade, e podendo vir então a fazer parte
dela como elemento de plenos direitos: um cidadão. O critério de eficácia
remete aqui para a utilidade. Um cidadão de pleno direito é uma pessoa que
possui as capacidades físicas e mentais e a educação necessária ao
relacionamento com o mundo e com os outros nos parâmetros definidos e aceites
pela sociedade.
O
acesso pleno à participação na sociedade requer a participação de terceiros.
Estes mediadores ou iniciadores têm que ser reconhecidamente qualificados para
o efeito.
Esta mediação entre o
neófito e o mundo, que inclui em si a sociedade, remete para os mais antigos
processos iniciáticos, dos primórdios das sociedades humanas, constituindo em
vários aspectos uma parte importante e indispensável dessa iniciação transferida
e adequada aos tempos actuais. Esta “iniciação” actual só poderá ser plenamente
compreendida se reconstituirmos o percurso histórico não só da educação mas dos
processos iniciáticos de uma dada sociedade, pois trata-se de uma aquisição dos
códigos culturais, éticos, linguísticos, entre outros, que permitirá aceder a
criança aceder à cidadania.
A passagem dos rituais
iniciáticos para os processos instrutivos e educativos responde e tem paralelo
ao desenvolvimento e complexificação da sociedade e da sua estrutura. À medida,
em termos históricos, que a sociedade se complexifica, também as formas de
acesso se tornam mais complexas: requerendo “percursos” maiores e adquirindo
funções adicionais. Se a função primeira da iniciação é seleccionar e separar,
seleccionar os aptos dos inaptos e separá-los dos neófitos, a crescente
complexidade das funções da sociedade vão não só distinguindo entre aptos e
inaptos mas criando perfis de aptidão, em qualidade e exigência que permitirão
o acesso à sociedade mas distinguindo entre os aptos as funções e o grau de
aptidão que potencialmente desempenharão. A estratificação da sociedade faz
diferenciar o processo que dará acesso a um ou outro estrato, e ao desempenho
dos papéis e funções a que o neófito, após superar a iniciação, terá acesso.
O
processo educativo proposto pela sociedade não é igual para todas as crianças e
influencia fortemente, para não dizer que determina, o seu futuro estatuto,
papel e funções na sociedade.
A estratificação social, que
determina os processos educativos é auto-replicante, promovendo a estabilidade
social inter-geracional, reduzindo a mobilidade e influenciada pelos cidadãos
das esferas que detêm o poder. Herdeira da tradição iniciática, a escola
reproduz esse mecanismo e cria vias diferenciadas de acesso, estratificadas,
sejam elas mais baseadas na competência do individuo seja nos factores
classistas da sua origem.
A educação na idade média
sintetiza esta ideia, quer no que respeita à nobreza como às camadas populares.
A iniciação num ofício é tipicamente feita por um mestre artificie a quem o
neófito é entregue até que seja capaz de dominar a arte e subsistir por si
próprio. As guildas controlam o acesso à profissão e regulam a sua actividade.
Não se tratando da escolarização tal como a entendemos hoje, estes processos
revelam já muitos aspectos ainda hoje presentes na escola, nomeadamente na
forma como são geridas as relações de poder e de legitimidade para aceder e
exercer o ensino. Já nesta época, como agora, o processo educativo e a sua
função selectora são determinados pelos valores da sociedade que o indivíduo
irá integrar e em grande parte pelo estrato social de origem desse individuo.
Hoje em dia a determinação precoce de percursos escolares com valorações
diferentes constitui o mais evidente desta estratificação: as vias de ensino e
as vias profissionalizantes não são opções equidistantes para todos os alunos,
e a condição social de cada um prévia à entrada na escola já contém condicionantes
que influenciarão o futuro percurso e o estatuto social no final do processo
escolar.
Desta forma a oposição entre
a criança neófita e o mundo complexifica-se na medida em que a relação que deve
ser estabelecida entre ambos está sujeita aos valores da sociedade em que a
criança será integrada como cidadão de plenos direitos mas também pelo
estatuto, papel e função que a sociedade espera que essa criança terá na
sociedade.
O critério de utilidade será
assim validado pela correspondência entre o desempenho da criança e as
expectativas que a sociedade nela projecta previamente. A função selectiva da
escola ganha preponderância em todo o processo, pois o desempenho será aferido
de acordo com critérios não objectivos nem declarados mas aceites mais ou menos
consensualmente pelos membros que integram a sociedade.
Os currículos ocultos das
escolas são transferidos das sociedades pressupondo a aceitação não declarada,
mas sim velada, destes “conteúdos” que contêm em si os valores e os códigos
comportamentais válidos na sociedade atribuindo-os como que por inerência às
funções à escola, sendo parte dos conteúdos não declarados de que o processo
educativo escolar deve ser veículo.
Na sua dimensão iniciática a
escolarização corresponde a um processo de acesso à sociedade, de caracter
pré-determinista, que ditará não apenas a integração ou não mas também as
condições de integração da criança na sociedade. Esse processo contém
componentes declaradas e dimensões ocultas que transmitem ao aluno não só os
conhecimentos que deve adquirir, mas também os códigos de conduta requeridos
para a forma de utilização desses conhecimentos.
O processo iniciático,
educativo, evoluiu ao longo da história, reflectindo a crescente complexidade
social e das funções e papeis que o neófito deverá assumir, bem como a
crescente qualificação – mais um critério de utilidade – das tarefas concretas
que este irá desempenhar, bem como a forma como as deve desempenhar. Nesta
dimensão é fácil verificar o paralelismo e sincronismo entre a industrialização
e o desenvolvimento dos sistemas educativos no mundo ocidental. Tarefas mais
complexas implicam mão-de-obra mais capaz, mais instruída.
Nesta altura a escola, a que
o acesso estava reservado às elites, é chamada a integrar mais crianças e por
mais tempo, prolongando o processo de acesso à sociedade, requerendo mais
competências no fim do processo. Competências que correspondam aos requisitos
da sociedade de forma a responder à sua necessidade de mão-de-obra. O
desenvolvimento tecnológico determina o início de uma nova era para a escola em
termos de dimensão, complexidade e conteúdos. A iniciação básica na leitura,
escrita e operações matemáticas passa a ser considerada apenas suficiente para
aceder à plenitude dos direitos como cidadão, ele deve ser capaz de contribuir
activamente para a produção, para o enriquecimento da sociedade.
Simultaneamente, e por
razões fáceis de entender, que se prendem com a dimensão e novos requisitos de
funcionamento, a escola institucionaliza-se e definem-se regras de funcionamento:
horários, currículos, níveis de ensino, modalidades de acesso e progressão. Nem
toda a educação é considerada útil pelo que são definidos os critérios e
requisitos à validade educativa. Uniformizam-se as regras fundamentais e
criam-se ou dão-se meios para o funcionamento de entidades inspectoras e
reguladoras, maioritariamente através de ministérios da educação ou outros
organismos centrais dos estado. Centraliza-se na esfera política e nas forças
que a influenciam a validação dos processos de acesso à cidadania plena, que
nesta altura são obrigatórios e quasi
universais.
Não bastam alguns neófitos,
todas as gerações têm o dever e a obrigação de se tornar cidadãos de pleno
direito: úteis e produtivos. Competentes. Competência que cabe ao Estado aferir
através das modalidades de acesso e progressão. Essa competência rege-se por
objectivos, e conteúdos, (e por vezes métodos) definidos e seleccionados de
acordo com os critérios e valores da sociedade, interpretados pelo poder
politico e aferidos pela entidade reguladora, com recurso a um corpo de
especialistas competentes e habilitados. Eles determinarão o que e como o
processo educativo capacitará os neófitos até que sejam admitidos na sociedade
como cidadãos de pleno direito, capazes de produzir e contribuírem para o
desenvolvimento da sociedade. Determinarão o que é necessário e o que é
possível saber através do processo educativo.
A
escola cumpre um papel funcional capacitando individuo com as soluções que a
sociedade determina como necessárias
A escola apresenta-se assim
como o veículo que transformará o neófito em aluno e o aluno em cidadão de
plenos direitos e deveres, capacitado para os exercer por forma a contribuir
para o enriquecimento e progresso da sociedade.
Regressemos ao início.
Dissemos que de um lado temos o aluno, do outro o mundo, em oposição, no
sentido em que o primeiro não se encontra habilitado a compreender e manipular
o segundo de forma eficaz.
Pelo processo de
escolarização, o aluno deverá tornar-se capaz a fazê-lo. Para que isto aconteça
é necessário que que objectivos, e conteúdos considerados úteis à sociedade e
que presidiram à construção do processo escolar sejam úteis à compreensão e
manipulação do mundo e que as competências e códigos de conduta permitam aos alunos
operacionalizar esses mesmos conhecimentos, no contexto da sociedade, de forma
a contribuir para o enriquecimento e progresso da mesma.
Estas premissas requerem que
sejam os objectivos e conteúdos adoptados válidos, e essa validação ocorre por
omissão, remetendo para a face oculta deste raciocínio, três pressupostos:
- que o mundo e a sociedade
concorrem para o mesmo fim
- que existe aceitação
generalizada dos objectivos e métodos do processo de escolarização e
- que o mundo e a sociedade
são, por definição, estáticos na sua estrutura e qualidades essenciais.
A função auto-replicante dos
processos iniciáticos requer que sejam os iniciados a fazer e a determinar a
iniciação dos neófitos, mantendo as características essenciais de todo o
processo. A quebra deste ciclo provoca uma ruptura com pressupostos básicos,
assentes numa relação hierárquica entre os dois, permitindo que o iniciado
questione a autoridade e ou a legitimidade do mestre. A quebra das estrutura
hierárquica dos processos iniciáticos é em si mesma uma quebra de todo o ciclo
e introduz o caos ao sistema. Esta ruptura é, nesse mesmo sentido, uma heresia.
A escola enquanto processo
iniciático não permite a quebra das natureza hierárquica das relações, sob pena
de sucumbir, e introduz mecanismos de controlo, assentes nos seus próprios
pressupostos e que se operacionalizam em medidas coercivas e de agregação, que
procuram sobretudo assegurar a adesão dos alunos e punir os desvios às condutas
desejadas.
A adopção e aplicação destes
mecanismos de controlo são parte integrante e transversal a todo o processo de
escolarização, nas suas componentes explicita e oculta do currículo e que se
confunde quer com os conteúdos quer com as formas de avaliação e selecção dos
alunos ao longo do seu percurso.
Os mecanismos de controlo
adoptam frequentemente formas que se sobrepõem aos próprios conteúdos curriculares,
sujeitando-os a validações que exigem não apenas a aquisição e utilização dos
conteúdos mas a sua demonstração de forma adequada às formas de avaliação
definidas. Não basta saber, não basta saber fazer, é necessário saber fazer de
acordo com as normas estabelecidas à avaliação, ou seja às formas de validação
dos produtos observáveis do processo escolar que terão repercussões na
progressão ou não ou mesmo na selecção dos alunos para etapas mais avançadas de
escolarização.
Esta necessidade de demonstração
observável dos produtos do processo da escolarização visa responder
positivamente às necessidades de validação do próprio sistema, e constituem a
fórmula por excelência de regeneração deste sistema, sendo que na essência essa
necessidade de regeneração caberá às mesmas entidades que definiram não só o
sistema como as formas de avaliação do sistema e que em última análise são eles
próprios produtos deste sistema. Se ainda houvesse dúvidas sobre as funções e
natureza auto-replicantes da escolarização, creio que ficariam aqui arredadas.
Mas os mecanismos de
avaliação e controlo dos resultados do processo de escolarização assume, como
se afirmou, a natureza de conteúdo na medida em que de forma oculta e expressa
fornece a informação necessária aos sujeitos – e fá-lo com a intensidade
necessária a surtir efeito - sobre o que deles é exigido no final de cada etapa
de acesso ao estágio subsequente.
Desta forma a verificação
positiva dos resultados consubstancia não apenas uma etapa de avaliação e
validação dos produtos da escolarização, uma forma de avaliação e validação do
sistema mas a súmula dos produtos do processo de escolarização. Para o aluno
não basta saber, não basta saber fazer, não basta saber fazer de acordo com as
normas estabelecidas à avaliação, é necessário que demonstre positivamente que
o faz e que a sua acção seja validada pelo avaliador.
Com esta constatação existe,
como é evidente, uma forte transferência da ênfase no processo de escolarização
enquanto processo de ensino e aprendizagem, para o sub-processo de avaliação e
controlo, na medida em que este não apenas determina a avaliação dos resultados
do processo de ensino e aprendizagem, a progressão dos alunos, mas também
condiciona o próprio processo de ensino e aprendizagem que é, pelo menos
parcialmente, destituído da sua validade e função intrínseca. O focus, quer dos
actores, quer do processo é transferido, pelo menos parcialmente, da aquisição
de competências de compreensão e manipulação do mundo para a apreciação da
capacidade demonstrativa do exercício dessas competências, de forma positiva, e
de acordo com os critérios definidos pelo corpo de avaliadores.
É verificável a existência
de desfasamentos entre competências e desempenhos, uma vez que os resultados
baseiam-se nas demonstrações evidenciadas e não no desenvolvimento das
capacidades intelectuais, físicas, emocionais e morais dos alunos.
Cada vez mais a oposição
entre a criança e o mundo, que se procura debelar através da escolarização, se
encontra impregnada e moldada por terceiros processos, que operam não
directamente sobre a interacção entre um e outro, mas sobre os processos que
promovem e regulam os elementos considerados pertinentes e válidos para a
sociedade bem como para a entidades tutoras do sistema escolar, na relação da
criança e o mundo.
Estes processos incluem, os
processos de avaliação do aluno e a montante destes os processos de selecção e
organização dos conteúdos que o aluno deverá conhecer para que possa progredir
na sua escolaridade.
A concepção que, regra
geral, preside à iniciação no processo de escolarização do aluno tende a
desvalorizar, senão a ignorar por completo as aprendizagens anteriores. Isto
acontece pela via da sobrevalorização da aprendizagem escolar, enquanto via
única de acesso à sociedade e à cidadania plena, mas também pelas necessidades
de harmonização ou padronização dos processos de escolarização no universo do
sistema escolar. Os processos de controlo têm dificuldade em lidar com a
heterogeneidade e assumem como factor crítico para o seu bom funcionamento a
existência de uma uniformidade que permita o controlo e a avaliação através de
instrumentos estandardizados e de aplicação universal.
Havendo necessidade de
avaliar, no sentido de calcular o deficit
entre os objectivos definidos centralmente e os graus de proficiência revelados
pelos alunos e pelas escolas, há que definir um conjunto de matérias e
competências a adquirir pelos alunos e níveis mínimos de desempenho aceitáveis.
Quando se menciona deficit a palavra
é a exacta, pois não se prevê um superplus,
sendo este uma aberração num
sistema em que a classificação máxima é 100%, ou seja nunca um aluno pode
ultrapassar os objectivos, uma vez que toda a demonstração de conhecimento ou
desempenho não expressamente solicitada é simplesmente desprezada. Este é mais
um dos elementos do currículo oculto intuitivamente apreendido pelos alunos: a
resposta certa limita-se á questão e níveis solicitados e o conhecimento
escolar é válido na escola, o restante apenas será válido no contexto em que
foi aprendido, e não na escola. Esta premissa não só é verdadeira como terá
outras implicações.
A selecção dos conteúdos é
feita, em diferentes níveis atendendo a diferentes critérios, sendo muitas
vezes justificada com a sua adequação ao nível etário e de desenvolvimento das
crianças. Raramente esta justificação é valida quando se dirige à criança
individualmente considerada, com as suas especificidades únicas e
características individuais. A adequação aplica-se antes a essa abstracção do
universo de crianças que se traduz em médias e tendências, em que todos são
iguais sem que se saiba exactamente a quem, ou sequer se a alguém.
Os conteúdos escolares que
por definição têm como objectivo reduzir ou anular a oposição entre a criança e
o mundo, e promover o controlo do segundo por parte da primeira adequando o
futuro cidadão às suas funções na sociedade, não surgem das necessidades expressas
da criança, como se poderia primeiramente supor, ou pelas características do
mundo, mas sim das necessidades que a sociedade sente face às expectativas
depositadas na criança-futuro-cidadão na sociedade, nomeadamente no que às suas
funções e estatuto diz respeito.
Na definição de conteúdos e
competências e face a evidentes e naturais limitações espácio-temporais, que
reduzem ou ampliam o tempo e o espaço reservado ao processo iniciático da
escolarização, são definidas prioridades. Estas prioridades resultam em
primeiro lugar da funcionalidade que os conteúdos e competências terão enquanto
ferramentas para a aquisição de conteúdos e competências de maior complexidade
e exigência, mas também do valor atribuído a cada uma das áreas do conhecimento
para o desenvolvimento e prosperidade da sociedade.
Esta estruturação com base
no “valor social” dos conteúdos é fácil de verificar quando se analisa os
conteúdos que constituem a componente curricular e obrigatória face aos que
ficam fora do currículo e têm, em regra, um carácter opcional, não sendo de um
modo geral alvo de avaliação nem influenciando a progressão do aluno.
Mas também dentro das
matérias que constituem o currículo se podem verificar ao longo de todo o
percurso escolar discrepâncias entre as cargas horárias definidas para os
conteúdos mais “nobres” e aqueles que são remetidos para um papel menor. Nesta
dualidade é indiscutível a diferença no tratamento dado às ciências
elementares, as actividades físicas e desportivas e as artes.
Nesta diferença de valoração
entre áreas do conhecimento, não se pode deixar que mencionar o papel político
e económico dos grupos informais que influenciam, em maior ou menor grau, as
decisões politicas em educação e a forma como as necessidades destes grupos e
da sociedade influem a orientação e peso de cada uma das áreas na constituição
do currículo escolar. Nesta construção e em particular nas actualizações
curriculares terão ainda grande peso os grupos editoriais responsáveis pela
edição dos manuais escolares adoptados nas escolas que têm indiscutível
interesse financeiro nessas decisões.
Destas disputas, bem como do
processo histórico de construção da escola enquanto instituição, no que
concerne às suas regras de funcionamento, resulta uma dimensão com enormes impactos
no processo de ensino-aprendizagem e estruturação de todo o sistema que
permanece consensual e sem discussão nas concepções dominantes da escola: a
segmentação e compartimentação dos saberes, que sobrevive a sucessivas
tentativas de experiências interdisciplinares que de tempos em tempos surgem
como que para se justificarem como verdadeiras excepções que não só confirmam
mas perpetuam a regra.
Esta segmentação tem várias e
profundas implicações na concepção do processo de ensino-aprendizagem, quer na dimensão
curricular, quer no que respeita ao currículo oculto do processo de
escolarização.
A primeira contradição
provocada por um ensino segmentado remete para o método analítico de Descartes,
que recomenda que se dividida ao máximo as coisas, em suas unidades de
composição, fundamentais, e estudar essas coisas mais simples que aparecem. A
esta etapa de análise seguir-se-ia uma fase de síntese, em que se deveria agrupar
novamente as unidades estudadas em um todo verdadeiro. No ensino, esta etapa
fica por realizar, e o conhecimento disperso por disciplinas. Em nenhum momento
se pede que os conhecimentos e competências adquiridas sejam integrados no
“todo verdadeiro” preconizado por Descartes.
Esta omissão é no entanto
coerente com a forma como o conhecimento é apresentado ao aluno, em doses mais
ou menos suaves, parcelares e segmentadas, sendo essa segmentação feita não
pelo aluno perante o mundo que o rodeia, mas por aqueles que construíram o
currículo e decidiram como segmentar e dosear esse conhecimento. Desta forma o
mundo é apresentado ao aluno como uma realidade espartilhada que nunca no seu
percurso será reconstituída, pois a última etapa, a avaliação, continua a
tratar os conteúdos de forma segmentada.
Uma das vantagens evidentes
da segmentação é a facilidade de manuseio e supostamente de apropriação.
Facilidade de manuseio porque sendo a informação tratada em pequenas doses, é
fácil controlar o processo em que o aluno se apropriará desse conhecimento, de
igual forma conteúdos mais limitados serão mais facilmente aprendíveis. Existem
estudos em que se demonstra que é mais fácil decorar uma longa sequência de
algarismos ou palavras se estas forem segmentada em partes mais pequenas que
sejam aprendidas independentemente, e depois reconstituídas na série inicial,
do que tentar decorar a serie completa de uma só vez. Mas estes estudos
falam-nos de mecanismos de memorização e não de compreensão, e se o objectivo
for compreender o significado dessa sequência de palavras ou números, o
trabalho isolado sobre cada uma das partes será inútil se não se atentar ao
todo.
A este propósito a própria
evolução do conhecimento é paradigmática na forma como trata o mundo. Um dos
exemplos mais gritantes é a evolução da árvore taxonómica dos seres vivos. A Taxonomia
é a disciplina académica que define os grupos de organismos biológicos,
com base em características comuns e dá nomes a esses grupos. Para cada grupo é
dada uma nota e os grupos podem ser agregados para formar um super-grupo de
maior pontuação, criando uma classificação hierárquica. Ttrata-se de organizar,
classificando pelas suas propriedades os seres vivos de todo o mundo. Embora as
primeiras classificações remontem a 3000 a.C., com descrições de plantas
comestíveis e plantas venenosas esta ciência teve um momento critico quando Carl Linnaeus
definiu as regras modernas da taxonomia com base numa nomenclatura binominal em
latim e definiu as regras para a criação e aceitação de novos nomes.
Isto permitiu “por ordem” no
mundo, ou pelo menos no modo como se olha o mundo, e eliminar dezenas ou
centenas de milhares de nomes de espécies que possuíam, na era pré-Linaeus,
designações diferentes. Esta taxonomia permite à filogenia, que organiza e
classifica a evolução dos seres vivos, determinar a existência de quatro mais
um reinos de seres vivos: Protistas, Fungos, Plantas e Animais a que acresce o
reino Monera. Estes reinos são definidos como independentes e estanques e
estabelecidos por .Whittaker em 1969, e procuram abarcar a totalidade dos seres
vivos existentes na Terra. No entanto desde logo surgem seres que por não
encaixarem em nenhum dos reinos são aleatoriamente incluídos num ou noutro reino
ou deixados num limbo incerto. Incluem-se aqui os vírus. Mas outros surgem, ou
são descobertos, com características de dois ou mais reinos ou de duas ou mais
subdivisões destes (Filo, Género, espécie…) e a árvore vai ganhando ramos
entrelaçados e pontos de junção entre hastes diferentes. A classificação
hierárquica linear revela-se insuficiente e desadequada. Os reinos demonstram,
à medida que se incluem espécies novas, que não são estanques nem
independentes. A forma de classificação é posta em causa e a árvore que partia
de um tronco comum, o ser primordial, transforma-se agora num globo, centrado
neste mesmo ser primordial, em que extremos de ramos diversos surgem lado a
lado, pois a sua evolução demonstra que seres inicialmente pertencentes a um
reino apresentam características muito semelhantes aos de outro reino. É cada
vez mais difícil aceitar uma classificação dos seres vivos de forma linear e
estática e a segmentação dá lugar a uma estrutura esférica, dinâmica e como
cada vez mais elementos que se interrelacionam entre si. Cada vez se revela
mais artificial a segmentação do mundo prometida por Lineaus…
Este fenómeno não traduz a
complexificação do mundo, mas sim o aprofundamento do conhecimento que temos
dele e sublinha a noção de que existe uma interligação entre os seus elementos
que e que esta é muito maior que o suposto levando a que as várias ciências
cada vez mais actuem em conjunto para que esse conhecimento possa progredir.
No entanto essa evolução científica
não parece influenciar a forma como a instituição escolar, no que respeita à
segmentação dos conteúdos diz respeito, actua. Continua-se de uma forma geral a
apresentar o mundo de forma espatilhada e hierarquizada aos alunos que através
dela devem adquirir os conhecimentos e competências necessárias a estabelecer uma
relação eficaz com esse mesmo mundo.
O caminho da especialização
e dos especialistas sobrepõe-se a uma abordagem holística dos conteúdos
associando a esta segmentação a noção de que os conteúdos são o conhecimento e
que este está contido num universo limitado de livros escritos para esse fim:
os manuais escolares.
Os manuais escolares
constituem, com o auxílio do professor, tantas vezes mais tradutor que
educador, a janela para o mundo tal como o apresenta a escola aos alunos. Os
manuais mais do que reunirem os conhecimentos a adquirir, seleccionam-nos,
incluindo-os ou excluindo-os consoante a sua validade de acordo com os
critérios do corpo de decisores. Os manuais escolares têm ainda a função de
organizar os conteúdos em disciplinas, separando-os de forma estanque e
inequívoca, e por fim, ordenando-os, de forma a que seja possível seguir a
ordem desejada pela qual se farão as aprendizagens.
O ordenamento dos conteúdos,
devidamente balizados e depurados, impressos em livro-manual constitui uma via
única e unidireccional aplicada na generalidade do percurso escolar e não
apenas indica o que é válido e pertinente, mas evidencia mais uma vez o que não
o é. O manual constitui-se no árbitro por excelência face à dúvida,
eliminando-a. As respostas estão indelevelmente impressas. A dúvida é sinal de
ignorância e de preguiça. Se a pergunta é colocada é porque ainda não chegou à
lição e terá que aguardar ou porque não aprendeu no tempo próprio. A dúvida
constitui-se como algo que possui uma carga negativa no percurso escolar,
devendo ser evitada por todos os actores e em particular pelos alunos e
professores. A escola é o espaço do saber e a dúvida é tratada como a sua
antítese, pelo que deve ser expulsa desse espaço. E essa é mais uma das aprendizagens
do currículo oculto que os alunos rapidamente adquirem, assim como os
professores. Uma aprendizagem que sendo valorizada no seu percurso nunca será
alvo de avaliação formal. As questões são colocadas apenas quando o aluno está
em condições de dar a resposta acertada, e na forma desejada. Até que tal
aconteça, ao questionamento é simplesmente indesejado.
Também do ponto de vista do
desenvolvimento moral e emocional esta aprendizagem, como outras, em particular
no que se refere à disciplina, moldam os alunos. A mensagem é simples e
directa: não se espera que o aluno diga o que sabe nem o que pensa, mas sim que
agrade ao professor, correspondendo às suas expectativas. Assim o professor tem
como missão primeira explicitar as suas expectativas, para depois poder verificar
qual o grau de cumprimento por parte de cada um dos alunos. A obediência, e
regra geral, o silêncio, a imobilidade e a discrição serão as opções mais
acertadas para a maioria dos alunos. Quem não arrisca não erra e quem não se
evidencia terá boas probabilidades de realizar o seu percurso escolar sem
grandes sobressaltos. Nesse sentido a escola incentiva de forma eficaz aprendizagens
ajustadas à sobrevivência. Trata-se de mais uma aprendizagem contida no
currículo oculto que sendo muito valorizada nunca será alvo de avaliação
formal.
Podemos assim constatar que
a escola selecciona, hierarquiza e delimita os conteúdos que o aluno deve
aprender, e avalia a demonstração dessas aprendizagens. Estes conteúdos e
avaliações são formalizados e explícitos, sendo determinantes para a progressão
do aluno. No entanto existe um conjunto de aprendizagens não explicitadas, nem
sujeitas a avaliação formal que desempenharão um papel tão importante como as
primeiras e sobre as quais as entidades reguladoras parecem não reconhecer ou
não querer sobre elas actuar. Estas aprendizagens, implícitas ou mesmo
subliminares existem e os seus efeitos são reais. E ao invés de constituírem um
sub-produto elas contêm em si grande parte dos objectivos da escolarização: a
reprodução do modelo da sociedade em que a escola existe e em que foi fundada.
A grande questão assim é
qual a validade do modelo escolar na habilitação dos alunos para se
relacionarem com o mundo. O mundo natural, tal como existe hoje será na sua
generalidade o mesmo que assistiu à fundação das actuais sociedades. No entanto
o conhecimento que dele temos alterou-se profundamente. Também no que se refere
à dimensão humana, existem elementos contraditórios, pois as sociedades
continuam a transformar-se.
A primeira tese que ocorre é
que o mundo, no que se refere à percepção que a humanidade tem dele – e através
da escola procura transmitir às novas gerações - está em transformação. No entanto a escola
procura reproduzir formas arcaicas de ver e interpretar o mundo. A resposta só
pode ser uma: o mundo, melhor dizendo, o conhecimento humano do mundo,
transforma-se, apesar da escola. Talvez seja possível ir um pouco mais longe:
conhecimento que temos do mundo transforma-se onde e porque a escola falha. Os
objectivos e conteúdos da escolarização constituem erros aplicados sobre um
modelo correcto. A escola permite habilitar os alunos a lidar com o mundo, mas
fá-lo reunindo muitos dos elementos que conduzem ao seu fracasso.
Isto permite ainda entender,
ainda que parcialmente, de outra forma um certo desconforto e insatisfação da
sociedade face aos alunos que concluem o seu percurso escolar…
Temos assim que retomar o
objecto primeiro da nossa análise: a oposição entre a criança e o mundo, sendo
a escola o processo por excelência que permitirá estabelecer uma relação eficaz
entre ambos, à luz da sociedade em que este sistema se insere.
Afirmou-se anteriormente que
a escola tende a tratar a criança como um ser incapaz, destituído de
conhecimento, desprezando as aprendizagens adquiridas antes da escola ou de
forma paralela à escola.
A escola encarrega-se ainda
de manter fora âmbito escolar essas aprendizagens.
Mas será que a valoração
dada pela escola aos conhecimentos e competências dos alunos é por estes
correspondida? Será que a selecção de conteúdos feita pela escola tem
correspondência positiva por parte dos alunos? Ou seja, será que os alunos
“gostam” do mesmo que a escola “gosta”.
E ainda será que os alunos
aprendem – apenas - o que a escola transmite (de forma explicita ou oculta)?
É evidente que a escola não detém
a exclusividade do ensino e menos ainda da aprendizagem. O conhecimento que
temos do mundo é difundido e está disponível de forma muito mais democrática e
universal do que a forma como a escola o tenta gerir. E apesar de todos os
esforços a escola não consegue ficar imune a esse fenómeno, e os alunos ainda
menos.
Os conhecimentos e
competências escolares e extra-escolares vão influenciar o percurso escolar e
extra-escolar dos alunos. Mas vão também influenciar a escola e em última
análise a sociedade, e esse é e será o elemento determinante de transformação
da sociedade.
Assim, temos que colocar a
questão inversa à já apresentada: como pode a escola habilitar os alunos a
lidar com o mundo de forma eficaz, sabendo-se que esse mundo está em
transformação?
Uma das hipóteses de
trabalho que surge como pertinente será encontrando a escola formas de deixar
de constituir um elemento de resistência à transformação da sociedade e sim um
factor de progresso, integrando essa transformação sem que perca as suas
características próprias, continuando a ser um espaço e um tempo de ensino e
aprendizagem.
Outra via, que não colide
com a anterior será através de uma (maior) abertura, nos conteúdos escolares e
da forma como são tratados, mas também da escola ao mundo, em particular no que
respeita à comunidade em que cada instituição se insere.
De forma natural surge
também a necessidade de integrar os conhecimentos extra-escolares na comunidade
escolar e nos processos escolares. A escola não pode querer ser intermediária
entre os alunos e o mundo enquanto se fecha sobre si própria. Abertura e
integração são as palavras chave.
De igual modo a escola não
se pode limitar a ser um repositório de conhecimentos herdados de gerações
passadas. Tem de colocar esses conhecimentos ao serviço das gerações que
através dela irão constituir a sociedade como cidadãos de pleno direito. E tem
que fazê-lo de forma a que sejam estes a construir os conhecimentos que
constituirão a base dessa sociedade.
A escola terá de ter a
coragem de ser um factor de ruptura com a estrutura social, negar a sua função
de reprodução social e ser um elemento chave na construção da nova sociedade.
Para isso a escola tem que aprender a
desaprender, como afirma o professor José Pacheco da Escola da Ponte.
A escola tal como a
apresentamos, nesta generalização algo empobrecedora, serve para ensinar às
crianças o que a sociedade considera útil à sua prosperidade, incluindo
conteúdos, competências e condutas. Mas verificámos também que apenas cumpre o
seu objectivo por inépcia e incompetência. Falha grosseiramente os objectivos
para que foi concebida e ainda assim mantém as suas funções e surpreendentemente
a sua utilidade.
Como proposta de
desenvolvimento deste texto propõe-se uma análise às excepções que ao longo da
história se constituíram como modelos de ruptura à escola tradicional,
procurando romper a sua função de reprodução social e a estrutura iniciática,
pervertendo o modelo clássico e centrando-se na aprendizagem por oposição à
transmissão de conteúdos. Muitas delas anularam ou reduziram fortemente alguns
mecanismos de controlo, como a avaliação. São vários os exemplos e os percursos
e merecem ser estudadas no sentido de se conhecer e perspectivar formas de
solucionar as contradições, se as há, entre a criança, o mundo e a sociedade.
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