A sopa de legumes continua a ser uma prova de resistência
familiar, de parte a parte.
A gestão das relações e dos poderes
paternais passa sempre pelos pratos de sopa que devem ser comidos, segundo uns
, mas que para outros devem ser aproveitados para travar mais uma batalha nessa
grande guerra da afirmação pessoal e reforço da personalidade. Entre o desejo
de "ser crescido" e a oportunidade de ser o centro das atenções, a
segunda opção acaba por ter mais força e lá vem o "Não gosto desta
sopa"". A solução imediata e que evitaria meia hora de birras e jogos
do puxa-e-empurra seria dar-lhe a sopa à boca. Mas essa é uma cedência a que o
poder paternal não está disposto a fazer.
Passa-se assim à fase da negociação,
primeiro silenciosa, ao tolerar e ignorar a colher imóvel , depois mais
ruidosa, ao relembrar as consequências que advêm de não comer a sopa.
Finalmente, são acordadas as condições aceitáveis por ambas as partes. De um
lado, a sopa já não sabe assim tão mal, mas é muita. Do outro, estabelece-se
que quem "já" é capaz de comer sozinho não precisa de ajuda.
- "É muita sopa, não consigo comer
tudo"
- Tudo bem, já comeste uma parte, come o
que fores capaz.
- É muita sopa, não consigo comer
tudo"
- "Então mais umas três
colheradas"
Lá vão três colheradas a custo, e fica
metade da sopa inicial no prato.
- "Já está." responde testando.
- "Não comes mais sopa?" e fica
no ar a ameaça de terminar ali o diálogo, acrescida das naturais consequências de
não comer a sopa: se já estás cheio não comes o resto do jantar, o que inclui a
sobremesa...
- "É muita sopa, não consigo comer
tudo", repete, disposto a prolongar as negociações.
- "e se fosse menos sopa?
Conseguias?"
- "Sim", diz em tom de vitória.
Finalmente uma cedência, percebe.
- Então e se fosse só uma tacinha de sopa?
Já eras capaz?
- "Só uma tacinha, era" a
vitória é certa e brilha-lhe nos olhos.
Vou então ao armário e tiro uma taça de
sobremesa
- Uma tacinha como esta? Esta leva pouca
sopa...
- "Sim, essa leva pouca sopa, assim
era capaz! Mas esta do prato é muita!"
Despejo a metade da dose inicial de sopa
que resta no prato que está à sua frente para a tigela, que fica cheia mas sem
que sobre sopa no prato.
Ele sorri, vitorioso. Agora apenas tem uma
tacinha de sopa para comer.
Do outro lado da mesa a mais velha abre a
boca de espanto. Como é possível? Então ele não vê que a quantidade de sopa não
mudou?
Não, ele não vê. Aos quatro anos ainda não
se leu Piaget nem as suas provas de conservação dos líquidos...
Finalmente as rudimentares noções de
psicologia do desenvolvimento que adquiri, com o mesmo esforço exigido a quem
tem demasiada sopa no prato, revelam a sua utilidade. Servem para os fazer
comer a sopa e um dia terem oportunidade de ler as provas do Piaget.