sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Ou comes a sopa ou chamo o Piaget


A sopa de legumes continua a ser uma prova de resistência familiar, de parte a parte.
A gestão das relações e dos poderes paternais passa sempre pelos pratos de sopa que devem ser comidos, segundo uns , mas que para outros devem ser aproveitados para travar mais uma batalha nessa grande guerra da afirmação pessoal e reforço da personalidade. Entre o desejo de "ser crescido" e a oportunidade de ser o centro das atenções, a segunda opção acaba por ter mais força e lá vem o "Não gosto desta sopa"". A solução imediata e que evitaria meia hora de birras e jogos do puxa-e-empurra seria dar-lhe a sopa à boca. Mas essa é uma cedência a que o poder paternal não está disposto a fazer.
Passa-se assim à fase da negociação, primeiro silenciosa, ao tolerar e ignorar a colher imóvel , depois mais ruidosa, ao relembrar as consequências que advêm de não comer a sopa. Finalmente, são acordadas as condições aceitáveis por ambas as partes. De um lado, a sopa já não sabe assim tão mal, mas é muita. Do outro, estabelece-se que quem "já" é capaz de comer sozinho não precisa de ajuda.
- "É muita sopa, não consigo comer tudo"
- Tudo bem, já comeste uma parte, come o que fores capaz.
- É muita sopa, não consigo comer tudo"
- "Então mais umas três colheradas"
Lá vão três colheradas a custo, e fica metade da sopa inicial no prato.
- "Já está." responde testando.
- "Não comes mais sopa?" e fica no ar a ameaça de terminar ali o diálogo, acrescida das naturais consequências de não comer a sopa: se já estás cheio não comes o resto do jantar, o que inclui a sobremesa...
- "É muita sopa, não consigo comer tudo", repete, disposto a prolongar as negociações.
- "e se fosse menos sopa? Conseguias?"
- "Sim", diz em tom de vitória. Finalmente uma cedência, percebe.
- Então e se fosse só uma tacinha de sopa? Já eras capaz?
- "Só uma tacinha, era" a vitória é certa e brilha-lhe nos olhos.
Vou então ao armário e tiro uma taça de sobremesa
- Uma tacinha como esta? Esta leva pouca sopa...
- "Sim, essa leva pouca sopa, assim era capaz! Mas esta do prato é muita!"
Despejo a metade da dose inicial de sopa que resta no prato que está à sua frente para a tigela, que fica cheia mas sem que sobre sopa no prato.
Ele sorri, vitorioso. Agora apenas tem uma tacinha de sopa para comer.
Do outro lado da mesa a mais velha abre a boca de espanto. Como é possível? Então ele não vê que a quantidade de sopa não mudou?
Não, ele não vê. Aos quatro anos ainda não se leu Piaget nem as suas provas de conservação dos líquidos...

Finalmente as rudimentares noções de psicologia do desenvolvimento que adquiri, com o mesmo esforço exigido a quem tem demasiada sopa no prato, revelam a sua utilidade. Servem para os fazer comer a sopa e um dia terem oportunidade de ler as provas do Piaget.